Teorizando: "Devised Theatre"


 

Ensaio de O Jardim de Joana. Em cena (da esq, para dir.) Dália (Júlia Oliveira), Margarida (Meire Silva), Lis (Lisa Brito) e Rosa (Priscila Mesquita). Foto de Emanuele Weber Mattiello.

 

Penso ser necessário, neste momento, conceituar o modo de criação do texto/ espetáculo O Jardim de Joana do grupo (Em) Companhia de Mulheres, que acredito se aproximar do que algumas autoras como Alison Oddey, Elaine Aston, Lizbeth Goodman e Maria Brígida de Miranda definem como devised theatre. O termo devised theatre, que literalmente significa teatro ‘feito’ ou ‘criado’, pode ser entendido como uma prática teatral onde o espetáculo é resultado do material criado durante o processo de montagem. Na falta de uma tradução já consolidada para o termo, faz-se aqui a opção por utilizá-lo no original em língua inglesa.

A escolha deste termo deu-se por sua associação às práticas teatrais principalmente feministas. Assim, as autoras acima citadas utilizam o termo devised theatre ao se referir aos processos de trabalho destes grupos de teatro com uma posição clara sobre sua produção artística com um viés na teoria e/ou prática feminista. Vale lembrar que, essa prática de escrita do próprio texto nos grupos de teatro feminista, surgiu pela escassez de peças teatrais que tivessem temas relacionados ao que esses grupos queriam tratar.

Deirdre Heddon[1] e Jane Milling[2], em seu livro Devising Performance: a critical history, de 2006, analisam o trabalho de grupos teatrais que utilizam os termos devising para definir seu trabalho. De acordo com as autoras, estes grupos trabalham sem nenhum roteiro pré-definido, não existindo a priori nem um texto a ser encenado, nem uma partitura de performance. Mas isso não significa que não possa existir a utilização de um texto em algum momento deste processo.

A partir do que Heddon e Milling escrevem, podemos compreender que o devising pode ser uma criação colaborativa, mas não necessariamente deve ser. Um devised work pode ser feito por um artista trabalhando individualmente, enquanto o termo criação colaborativa implica que existem pessoas trabalhando em colaboração. Assim, entendo que não é adequado utilizar processo colaborativo como tradução para devised theatre

 Sobre o mesmo tema Alison Oddey escreve no artigo Devising (Women’s) Theatre as meeting the needs of changing times[3]. De acordo com esta autora, em um devised theatre podemos começar a criar a partir de qualquer elemento.

Maria Brígida de Miranda[4],em Playful training: toward capoeira in the phisical training of actors [5], publicado em 2010, explica que, apesar de não existir uma prática única entre os grupos feministas ou de mulheres, o método mais o utilizado é o do devised theatre. Segundo a autora, este método de trabalho “abriu inúmeras possibilidades para os artistas e grupos interessados ​​em ampliar as fronteiras da prática do teatro conservador e tradicional” [6], sendo que, esta forma de fazer teatro surgiu em “contextos políticos repressivos” [7], como por exemplo, na época da ditadura militar, no Brasil dos anos 1960. Como exemplo brasileiro, Miranda cita o trabalho do grupo Teatro de Arena, idealizado por Augusto Boal.

Dentro deste contexto político repressivo, “grupos de teatro lutaram para existir como espaços culturais alternativos onde as ideias e opiniões pudessem ser expressadas e debatidas”[8]. Miranda explica que “a questão da diferença de gênero ainda não era parte da agenda da prática de teatro alternativo[9]” da Inglaterra até 1968. Embasada em Michelene Wandor, a autora continua escrevendo que “questões relativas às mulheres e à orientação sexual”[10] só entraram na agenda do teatro alternativo neste país na “revolução teatral pós-1968”[11].

Para os grupos de teatro de mulheres que surgiram nos anos 1970 e 1980 em países como Austrália, Inglaterra e EUA, o devised theatre era a forma de trabalho mais utilizada, pois era “uma estrutura alternativa de trabalho para aquela do teatro tradicional”[12]. Isso significa a criação de espaços mais democráticos, sem uma estrutura hierárquica, no qual as mulheres teriam espaço para participar ativamente, desenvolver sua criatividade e trabalhar questões que fossem centradas na mulher.

Segundo Miranda, “compartilhar a responsabilidade e o crédito ou criar uma peça de performance é empoderar as performers que participam do processo”[13]. Além disso, a autora também ressalta que o devised theatre é aberto para que os artistas possam desenvolver estratégias de criação. Assim, o grupo pode escolher técnicas e exercícios específicos, ou criar novos, de acordo com as suas necessidades. O devised theatre, ainda de acordo com a autora, pode ser utilizado não apenas para que artistas mulheres possam encontrar o seu espaço e a sua voz, mas também “proporciona oportunidades para a inovação artística”[14].

Em Feminist Theatre Practice: A Handbook, publicado em 1999, Elaine Aston aponta que a dificuldade em organizar o material criado, é frequentemente vivenciada por grupos que trabalham em um devising context, assim como nós[15]. A autora também ressalta que:

"Todos os membros do grupo devem participar na escolha de uma história, ao invés de depender de um membro do grupo para encontrar e convencer aos outros de sua escolha. Apesar de ser um processo demorado, o grupo provavelmente será beneficiado em longo prazo, como todos os membros podem sentir que têm tomado parte em um processo de consulta, e ter compartilhado pensamentos preliminares, objetivos e processos decisórios, e assim por diante".[16]

Até chegar à questão de qual história iríamos contar, ou seja, qual o nosso tema geral, ou a nossa “palavra mútua”, o processo foi lento, às vezes angustiante, mas tínhamos esperança de chegar à palavra comum. Acredito que este tempo foi bom para que amadurecêssemos nossas ideias e adquiríssemos mais confiança individual e em nós enquanto um grupo.

O grupo (Em) Companhia de Mulheres optou pelo caminho do devised theatre por não ter encontrado nenhum texto prévio que o contemplasse. O desejo era criar uma dramaturgia própria que tratasse de questões feministas, dentro dos temas escolhidos pelo grupo agregados aos estudos primeiros sobre os contos, mitos e deusas. O meu desejo enquanto pesquisadora era experimentar este tipo de prática na qual a dramaturgia se cria coletivamente.

Notas:

[1] Deirdre Heddon é PhD em Performance Arte de mulheres e atualmente ensina, entre outras coisas, Performance Contemporânea e performance autobiográfica na Universidade de Exeter. Fonte: Google books. Disponível em: http://books.google.com/books?id=pRp-QgAACAAJ&dq=devising+performance&hl=en&src=bmrr&ei=MiKBTevFFYOI0QHa2JDxCA&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved=0CCkQ6AEwAA

[2] Jane Milling ensinou devising nas universidades Sheffield e Exeter. Fonte: Google books. Disponível em: http://books.google.com/books?id=pRp-QgAACAAJ&dq=devising+performance&hl=en&src=bmrr&ei=MiKBTevFFYOI0QHa2JDxCA&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved=0CCkQ6AEwAA
[3] ODDEY, Alison. “Devising (Women’s) Theatre as meeting the needs of changing times”. In: Goodman, Lizbeth; De Gay, Jane (Edited by). The Routledge Reader in Gender and Performance. New York and London: Routledge, 1998. Pp. 118-124.
[4] MIRANDA, Maria Brigida de. Playful training: toward capoeira in the phisical training of actors. Saarbrücken: Lap Lambert, 2010.
[5] MIRANDA, Maria Brigida de. Playful training: toward capoeira in the phisical training of actors. Saarbrücken: Lap Lambert, 2010.
[6] “opened up numerous possibilities for performers and groups interested in pushing the boundaries of conservative and mainstream theatre practice.” (MIRANDA, 2010:196).
[7] “repressive political contexts” (Op, Cit.: 197).
[8] “theatre groups struggled to exist as alternative cultural spaces where ideas and opinions could be expressed and debated.” (Op. Cit.: Loc. Cit.)
[9] the issue of gender difference was not yet part of the agenda of alternative theatre practice” (Op. Cit.: Loc. Cit).
[10] “issues related to women and sexual orientation” (Op. Cit.: Loc. Cit).
[11] “post-1968 theatre revolution” (Wandor apud Op. Cit.: Loc. Cit).
[12] “an alternative working structure to that of traditional theatre” (Op. Cit: 198).
[13]“sharing the responsibility and credit or creating a performance piece is empowering for the performers participating in the process” (Op. Cit.: Loc. Cit).
[14] “provide opportunities for artistic innovation” (Op. Cit.: 200).
[15] ASTON, Elaine. Feminist Theatre Practice: A Handbook. Routledge: London/ New York, 1999. P. 150
[16] “All members of your group should participate in choosing a story, rather than relying on one group member to find and to persuade the others of her choice. Although a time-consuming process, the group is likely to benefit in the long term as all members can feel (p. 151) they have taken part in a consultative process, and have shared in preliminary thoughts, aims and decision-making processes, and so on” (ASTON, 1999: 151).


Comentários