A DEUSA DESCONHECIDA

Foto do ensaio. Atriz desconhecida...
Foto: Priscila Mesquita

 
Autora: Beatrice Bruteau

In: NICHOLSON, Shirlei. O novo despertar da Deusa: o princípio feminino hoje.

Fichado por: Priscila Mesquita

A presença da Deusa, sempre esteve em seu lugar sagrado na nossa consciência, apesar de, nossos pensamentos cotidianos não desconfiarem dessa presença. Ao adentrarmos no que muitos chamam de “nova era” passamos a perceber que a Deusa está retornando, apesar de não sabermos exatamente de que modo.
Em eras passadas, a Deusa, enquanto símbolo do princípio feminino, foi reconhecida e homenageada sob diversos aspectos. Depois, disfarçada, tornou-se subordinada a divindades masculinas, exercendo um papel auxiliar, enquanto ser secundário e derivado. Assim tornou-se bode expiatório para muitos males da humanidade, personificando a tentação, a sensualidade e o pecado. Assim, enquanto para o masculino temos termos análogos como a luz, a racionalidade, a atividade e o consciente, para o feminino temos a escuridão, a irracionalidade, a passividade, o inconsciente. Uma apreciação positiva do escuro é justificada pela necessidade de que para haver luz é preciso existir a escuridão. Nesse sentido, os termos são complementares e não exclusivos.
Os dois lados do feminino hoje são “a combinação objeto/ consumidora/ apoio de todo dia, e, do outro, o aspecto misterioso”, responsável pelos sentimentos e intuições. Para aceitar o tumulto de nosso inconsciente é preciso experenciar nossos corpos sem culpa. Agindo assim, reconhecemos o princípio feminino e prestamos honras a ele.
A autora acredita que a Deusa é desconhecida por três motivos: sua inefabilidade; por não sabermos qual é a qualidade que identifica o princípio feminino; e por não sabermos qual de seus aspectos irá se manifestar no período que estamos adentrando. Se compreendermos qual o seu princípio, entenderemos sua atual manifestação. Podemos compreender o seu princípio através de sua inefabilidade.
Nos Mistérios de Elêusis[1], antiga adoração da Deusa Dupla, sua inefabilidade era percebida. Elêusis ajuda a chegar perto da qualidade identificadora do princípio feminino.

O ANODOS


Anodos significa “caminho para trás” ou “caminho para cima”. Neste evento, na Grécia Clássica, a “volta” da Deusa era simbolizado através da contação dos mitos de Deméter e Perséfone.
Conta o mito que Perséfone, também chamada de Kore (Donzela, Virgem), filha de Deméter (Mãe das Sementes), fora raptada por Hades e levada para o mundo subterrâneo. Deméter esquece-se das colheitas e vaga pela terra à procura de sua filha. Descobre o ‘caminho de descida’ para o subterrâneo, revê a filha retorna. A volta de Deméter era celebrada pelos antigos num grande festival. Segundo Homero, é a própria Perséfone quem sobe ao mundo superior, como Rainha do Outro Mundo, conduzindo a carruagem de Hades.
As duas deusas passam a agir como apenas uma ao se reencontrarem. Suas representações muitas vezes se confundem, não podendo se distinguir quem é quem. Isso pode significar que as duas Deusas são dois aspectos de uma mesma divindade, fadada a passar por diversas transformações.
O significado do anodos pode ser portanto, a junção dos dois aspectos da deusa, e a celebração estabelecida por ela nos mistérios visava a comemorar a reintegração do seu ser. “E talvez seja porque os iniciados, que haviam se preparado com jejum e silêncio junto com Deméter e como ela beberam o kykleon, também ‘descobriram’ e se reuniram com sua própria ‘Kore’ perdida” (p.84). Era proibido falar sobre o segredo de Elêusis, e o segredo era a própria Kore.
Além de mãe e donzela serem faces de um único ser, Deméter estaria associada aos mundos material e cotidiano, e Perséfone às coisas do além. O mito significaria a procura de nosso aspecto virginal, puro, um estágio anterior da vida, a fonte, a origem. Enquanto signifcado integral final, Perséfone é a prole, o fruto, o objetivo.
Nos aproximamos da “volta” da Deusa hoje, pois somos pressionados a encontrar um sentido profundo para nossas vidas, e isso se dá através da integração e da unidade. Neste mito, a dualidade da ‘que procura’ e da ‘que é encontrada’, proporcionou uma visão da fonte feminina da vida tanto para homens quanto para mulheres. Seria a busca pelo self virginal, inteiro, que nos redime quando nos unimos à ele. Assim, Deméter/Kore, simboliza a manifestação criativa e a volta à unidade; é a “eterna comunhão dos muitos e do um”. A espiga de milho mostrada aos iniciados nos mistérios, resume este encontro.

O SIGNIFICADO BÁSICO DA FEMINILIDADE

A autora sugere que o significado básico da feminilidade é a totalidade. Isso significa a integração de todos os pares de opostos, não só através da complementaridade, mas também da alternância.
Se originalmente havia uma consciência do todo, com o tempo ela foi desenvolvendo diferenciações, aprendendo a analisar, categorizar, especializar, separar. Isto gerou um desequilíbrio e conseqüentemente o desejo de reintegrar a vida. Este ciclo, historicamente constitui um movimento em espiral.
A totalidade feminina, seqüestrada pelo princípio masculino e levada ao subterrâneo volta, e não volta como foi. Lá, ela se uniu com o masculino e ao retornar traz consigo todas as riquezas e o princípio masculino. Retorna como Rainha, governa almas e concede a imortalidade. Ela ainda pode dar à luz a um filho, o qual poderá através de diversos feitos, buscar sua completude no feminino. É o movimento em espiral da vida (Assim como o DNA, n.a.). Se o princípio feminino é o da totalidade, o masculino é o da especialização. Transitamos entre estes dois princípios. “Cada análise parte do nível mais alto enriquecida pela síntese anterior, e cada síntese sucessiva incorpora as riquezas ganhas pela análise antecedente” (p.87).
Segundo Marshall McLuhan, a partir do século XVI, a imprensa cria o individualismo, o nacionalismo, a uniformidade, continuidade e a linearidade como norma para consciência humana conhecida por ‘racionalidade’. O estado de vigília, este consciente e racional é o estado aceito como “real”, como norma em nossa cultura. Os sonhos, transes de consciência cósmica ou coletiva são considerados como míticos, e isto seria uma ‘involução’ em nossa cultura.
“Mas a nova consciência é precisamente mítica”, apesar de ainda pensarmos de modo fragmentado. Segundo Wescott, o institucionalismo artificial do passado cristalizou nosso comportamento, protegendo-nos na “transição em nível instintivo de uma cultura anterior” que está ficando para trás dando-nos liberdade para adentrar em uma nova cultura (p.88).
Para Henri Bérgson, a intuição é o instinto dotado de inteligência. Essa integração nos leva a compreender reflexivamente o élan cósmico, constituindo-se em filosofia.

NEOFEMINISMO

Embasada em McLuhan, a autora chama a era passada de masculina, ou seja, a era da mecanização, “caracterizada pela fragmentação, centralização e superficialidade”. E, “a nova era, a da automação e da mídia eletrônica” é “caracterizada pela integração, descentralização e participação mais profunda”. Os meios de comunicação ajudam a moldar as relações humanas e as estruturas sócias, sendo que mais importante do que a mensagem, é a qualidade do veículo que a transmite, tornando-se ele a própria mensagem. Os veículos do passado são “exclusivos”, por condicionar seus receptores a determinados estados de consciência e, as novas formas, são “inclusivas”, pois solicitam a interação da audiência, de modo que sejam preenchidas as lacunas de significados.
As culturas não industrializadas, não especializadas, em frente aos novos meios eletrônicos de comunicação “totalizantes” e “instantâneos”, utilizam-se de elementos de sua cultura oral tradicional para tornar o novo mundo familiar. Já a nossa cultura alfabetizada considera esses meios estranhos e ameaçadores, por nos “destribalizar”. Porém elas irão nos “retribalizar”.
A autora chama essa “retribalização” de neofeminismo, distinguindo-o da consciência tribal original ou paleofeminismo pois é um movimento da espiral evolucionária e não um movimento retrógrado. Como Perséfone que retorna como Rainha do Subterrâneo, trazendo as riquezas de seu captor, a racionalidade, a inteligência e a cultura. Assim deve-se compreender de modo abrangente o princípio feminino, para aplicá-lo tanto a era paleofeminina quanto a neofeminina.
O neofeminismo, enquanto nova consciência feminina, rejeita a separação e o exclusivismo. É um movimento para homens e mulheres, que objetiva “vencer a alienação interna e social das quais sofremos e nos reunirmos conosco mesmos, um com o outro e com o mundo inteiro” (p. 90, 91).
A consciência individual e analítica se transforma em direção à uma visão holística, ou seja, a uma consciência da interconexão da vida, provocada pela intensificação do comportamento intuitivo e pela reestruturação de nossa percepção, bem como de nossa visão de mundo. Isto também é chamado de “morte do ego”. Assim devemos ver o outro como nosso próprio self, utilizando nossa intuição integral (intelectual e afetiva) dentro de uma realidade holística.
Assim, o movimento feminista deve ser considerado um movimento de salvação. Em sua essência, o neofeminismo é um movimento em direção a um estado “ultraconsciente”, evidenciado por “‘um sentimento de amor transcendental’ e ‘uma aceleração do intelecto’” (p.91). É a união do instinto, ou paleofeminismo (unificado, direto imediato, cheio de significado, simpático e vital) com a inteligência, ou masculinismo (alerta à distinção, capaz de um raciocínio indireto e discursivo, desinteressado e controlado). “E possui uma nova qualidade própria em sua visão penetrante, o insight holístico que abrange muitas experiências em um só significado” (p.92).


Florianópolis, 19 de Maio de 2010.




[1] Ver BRANDÃO, Junito de S. Mitologia Grega Vol. II. Editora Vozes: Rio de Janeiro, 1997

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